Entenda como a reforma da Previdência afeta a aposentadoria rural
Proposta atinge principalmente as mulheres que passariam a ter idade mínima igual a do homem para solicitar benefício.
Aos 46 anos, Nair Zimmermann Pelizzon já nem lembra direito quando começou a trabalhar na roça, em Irati, no Oeste de Santa Catarina:
– Quando consegui pegar no cabo da enxada, já comecei a ajudar. Não sei se tinha 10 anos. A gente ia metade do dia na escola e, na outra metade, ajudava.
Ela nunca deixou de trabalhar na lavoura. Casou-se com Ércio Pelizzon e mudou-se para Chapecó. Pela atual regra da Previdência Social, Nair terá que trabalhar pouco mais de oito anos, pois completa 47 em 2019 e atingirá 55 em 2027. Mas, pela proposta de reforma da Previdência apresentada pelo Governo Federal, Nair terá que trabalhar cinco anos a mais. É que, ao contrário da trabalhadora urbana, que continua com idade mínima inferior a do homem para aposentaria, no meio rural será igual para solicitar o benefício, que é de 60 anos.
– É injusto isso, porque além de trabalhar na lavoura, a gente tem que cuidar da casa. Enquanto isso, tem muitos privilégios que não foram cortados. A gente fica indignada e até desanima – lamenta Nair.
Há ainda outros fatores: a jornada no campo não segue horários, feriados e recesso.
– Não tem como tirar férias pois não pode deixar a horta. No inverno a gente não trabalha tanto, mas no verão, em véspera de feira, começa às 7h, 7h30min, e termina 21h, 22h – explica a agricultora.
O casal vende verduras e legumes numa das feiras do centro de Chapecó, nas quartas-feiras e sábados. Com 17 mil metros quadrados na linha Scussiato, área que começa a ficar cercada por loteamentos, a família consegue ter uma renda mensal de R$ 7 mil a R$ 8 mil, calcula Ércio Pelizzon. Não é muito, mas dá para o sustento do casal e do filho caçula, Eduardo. A filha mais velha, Thaís, trabalha na área financeira de um shopping.
Os Pelizzon cultivam tomate, cenoura, alface, entre outros. Aos 50 anos, Ércio começa a sentir o peso da idade chegando.
– Antes, eu pegava uma caixa de tomate sozinho. Agora, pegamos em dois. Sinto que há um desgaste nas articulações. Com essas mudanças, a gente fica preocupado, mas não tem o que fazer. O jeito é melhorar as condições de trabalho para não prejudicar a saúde – sugere.
Entre as melhorias na propriedade está uma estufa com hidroponia, onde as mudas de alface ficam num patamar mais elevado, que evita sobrecarga na coluna. Mesmo assim, na hora de plantar as mudas, a exigência do corpo é maior.
– O trabalho no campo já é sofrido, pois é um serviço pesado. Nós utilizamos só a mão de obra familiar, então não dá para comparar com trabalhador urbano – pontua Eduardo, que tem 20 anos e pretende continuar na propriedade com os pais.
Lideranças sindicais são contra a reforma
As lideranças de sindicatos e movimentos ligados aos agricultores estão se mobilizando para tentar mudar alguns aspectos ou até a totalidade da reforma.
– Essa proposta vai atingir gravemente as mulheres. Pelo salário de hoje, as famílias vão perder R$ 60 mil em cinco anos com o aumento da idade mínima para elas. Além disso, com a contribuição individual, muitos não vão contribuir, ou talvez o homem vai, e a mulher não. Com isso, ela pode ficar sem benefício em caso de acidente ou gravidez – explica a advogada Ana Elsa Munarini, que é filha de agricultores e assessora jurídica do Movimento das Mulheres Camponesas.
Ela alerta que a contribuição de R$ 600 anualmente, por família, é provisória. Para atingir esse valor, o núcleo familiar terá que movimentar R$ 48 mil por ano, no bloco de notas.
Ana Elsa pondera que alguns produtores não terão dificuldade em atingir essa contribuição, mas justamente as famílias mais empobrecidas não vão conseguir fazer essa movimentação e, além disso, terão que pagar para chegar aos R$ 600.
– Pode parecer pouco, mas quem não tem uma boa renda vai optar por comprar comida e pagar a luz em vez de pagar a contribuição – avalia.
A advogada também teme pela fragilização dos direitos, pois a mudança por lei complementar permite alterações por maioria simples do Congresso. Atualmente, são necessários 2/3 dos votos para mudar o que está na Constituição Federal.
Ana diz que o governo não tem muitos gastos com os agricultores e que eles assumem alguns custos, como iluminação e destino do lixo, além de serem responsáveis por cuidar da terra, da água e do meio ambiente.
O presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Santa Catarina (Fetaesc), José Walter Dresch, afirma que apoia uma reforma que corte privilégios, não que tire direitos.
– Nós não aceitamos nenhum direito a menos. Os agricultores têm uma jornada diferente dos demais trabalhadores, principalmente as mulheres, que foram as mais penalizadas. Além disso, o tempo de contribuição aumentou para 20 anos. E quem não atingir os R$ 600 e não fizer o pagamento até o primeiro semestre do ano seguinte, perde um ano de contribuição – explica Dresch.
Ele cita que agricultores que estão fora de sistemas de integração, ou que têm pouca produção, não conseguirão contribuir. Outro fator preocupante é que em anos de estiagem, não há renda para pagar a contribuição.
Dresch questiona se o teto da Previdência vai valer para categorias que são privilegiadas. A entidade já está mobilizando deputados estaduais e federais para pressionar e defender os agricultores.
Além disso, fez um seminário explicando as mudanças previstas. Uma das palestrantes foi a doutora e presidente do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário, Jane Lúcia Wilhelm Berwanger. Ela criticou o aumento da idade de aposentadoria das mulheres do campo, igualando-se a dos homens.
– É estranho ver isso, pois se no meio urbano há uma diferença de três anos, por que no meio rural não tem? Acho muito cruel trabalhadoras rurais se aposentarem com 60 anos, pois é uma atividade mais penosa que a de trabalhadoras urbanas. Mas o mais grave é tirar todos esses direitos da Constituição Federal, passando para lei complementar, o que poderia ser já modificado no ano seguinte. E o mais grave é mudar uma Previdência Social para de capitalização, uma previdência privada – compara.
O coordenador estadual da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar da Região Sul, Alexandre Bergamin, segue a mesma linha de raciocínio:
– O projeto mexe em questões fundamentais e representa um desmonte de direitos previstos na Constituição de 1988. A questão central é a capitalização. Quem vai ser mais atingido é o jovem, que terá que contribuir nesse novo modelo. Acredito que isso será mais um motivo para eles deixarem o campo.
Governo garante que vai manter subsídio
O diretor de programa da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia, Felipe Portela, explica que o atual governo aproveitou parte da proposta que havia no anterior e que tinha sido discutida no Congresso para elaborar a atual reforma. Ele garante ainda que será mantido o subsídio na Previdência Rural.
Portela afirma que este setor é bastante deficitário, mas entende que há dificuldade de arrecadação e entende o papel social que desempenha. Em 2018, a Previdência Rural arrecadou apenas R$ 9,9 bilhões e teve custo de R$ 123,7 bilhões – o governo subsidia a diferença.
Em relação à igualdade na idade de aposentadoria entre homens e mulheres na área rural, Portela justifica que a diferença já é menor do que no meio urbano.
— Já tem uma idade reduzida em relação à mulher urbana — afirma.
O trabalhador rural é uma categoria diferenciada, assim como o professor e o policial. Além disso, há estudos apontando que a mulher tem uma expectativa de vida superior ao homem no meio rural. Houve melhora na qualidade de vida do meio rural, as pessoas estão vivendo mais. Teremos uma fase de transição, em que vai aumentar seis meses a cada ano, até chegar ao mínimo de 60 anos em 2029 – explica Portela.
Em relação ao valor mínimo de R$ 600 de contribuição anual, ele defende que a medida é importante para ter controle sobre os beneficiários, reduzindo riscos de fraudes.
Diz ainda que há uma margem prevendo que, em alguns anos, pode ocorrer frustração de safra. Portela alerta também que quem ganha mais vai contribuir mais.
– É um valor que não é individual e sim de um núcleo familiar que pode ter duas, quatro, seis, oito pessoas. Isso vai permitir um tipo de controle não apenas testemunhal, como é atualmente. Além disso, quem trabalha no campo tem uma expectativa de trabalhar 35, 40, 45 anos. Nesse período, só precisa comprovar 20 anos de contribuição. Não precisa ser de forma ininterrupta. E essa contribuição dá direito a outros benefícios, como salário-maternidade e auxílio-doença. A família que vai contribuir com R$ 20 mil ao longo do tempo, em caso de doença, já será beneficiada com auxílio nesse valor. O sistema é muito subsidiado para promover a inclusão – diz o diretor.
Portela explica também que a questão da capitalização – que prevê que o trabalhador vai receber de acordo com o que contribuir –, que será implantada de forma gradual, será opcional, e não obrigatória. Também será garantido o salário mínimo e manutenção da correção indexada a ele.
O diretor entende que a proposta é correta, mas que os deputados podem e devem fazer emendas para melhorar o sistema. Só alerta sobre a necessidade de ser votada o quanto antes. Ele cita que o déficit, que foi R$ 195,2 bilhões no ano passado, pode chegar perto de R$ 300 bilhões neste ano.
– Anualmente, ele aumenta de R$ 30 bilhões a R$ 50 bilhões, e esses recursos são tirados do Tesouro, de outros investimentos, para cobrir esse déficit. Com a reforma, o objetivo é primeiro equalizar isso, para depois ir reduzindo o déficit com o aumento da arrecadação. Nossa expectativa é de que a reforma da Previdência seja votada no primeiro semestre, pois quanto mais tempo, maior o impacto, a reação econômica demora mais e atrasa outras reformas, como a tributária.
Fonte: Darci Debona / www.nsctotal.com.br / Foto: Ércio (E) e Nair na propriedade da família em Chapecó (Foto: Tarla Wolski / especial)